Crónica de Alexandre Honrado
A Europa como Utopia
Em tempo de reformular a Europa, considero oportuno resgatar um texto que publiquei, com maior desenvolvimento é certo, no recém-editado — pela Petrony Editores — Dicionário dos Valores e Cidadania Europeia. Não resisto em partilhar esta passagem. Aí vai:
A Europa é, antes do mais, uma utopia. Um lugar ideal, idealizado, fora do real, onde as pessoas anseiam viver bem, com justiça e solidariedade social, paz, equilíbrio e interajuda. Essas características justificam a razão maior pela qual milhões de pessoas, vindas de pontos bem diferenciados do mundo, procuram aqui o que lhes foi negado nas suas terras de origem.
A Europa é a utopia dos povos que a constituem e a dos que para ela imigram em busca de um lugar de paz e segurança que, a um tempo, garanta paz, pão e prosperidade, a resposta a todas as esperanças e anseios de sobrevivência e estabilidade legítimos para todos os seres vivos, num espaço definido e de fronteiras permeáveis, sãs e ativas no tempo de hoje e possibilitadoras de futuro sedutor de respeito pelos Direitos Humanos e cívicos.
A Europa é também o continente de onde partiram aqueles que perseguiram utopias várias, de prosperidade, de riqueza, de outros espaços geográficos ideais e acolhedores. Assim se fez a Expansão (nomeadamente a portuguesa e a espanhola) e procuraram-se provas das narrativas mais fartamente idealizadas, perseguição de utopias como a que era suportada pelo mito do Preste João, presença ímpar no imaginário da Cristandade Oriental durante a Idade Média e nos começos da Época Moderna, sinónimo da utopia de um reino próspero e incomparável.
Saindo do paradigma bíblico onde a utopia é parte integrante fundamental, lançando bases religiosas profundas, com o paraíso como o espaço de vida ideal e onde os primeiros utentes, Adão e Eva, são os primeiros beneficiados de um espaço-tempo utópico, o antropocentrismo vai afirmar outro tipo de formatos utópicos, distanciados da crença e do teocentrismo.
A Europa, tão marcadamente cristã, ensaia progressivamente novas for-
mas de pensar, sentir, agir e reagir que conduzirão a novos tempos de mudança.
No Século das Luzes, a Europa construiu outras narrativas utópicas que ainda hoje nos contagiam e onde se destaca a visão de Kant, explícita na expressão “Sapere aude!” (“atreva-se a conhecer”, elocução que Michel Foucault irá resgatar no século XX, em 1984, no seu O que é o iluminismo?).
Na interpretação kantiana, a expressão remete-nos para uma utopia da sociedade culta, de um mundo letrado ou iluminado. A utopia da educação, da sapiência, do ser humano dotado de ferramentas culturais para ir mais longe na sua qualidade de vida, interpretada por um cidadão mais livre e preparado para os desafios da vida. Nesta perspetiva, há que contar como filósofo-rei ou rei-filósofo: trata-se aqui de uma utopia da coexistência do poder político com a sabedoria que assegura a liberdade.
Das muitas utopias cuja soma traduz a grande utopia europeia, encontramos ainda a utopia da ecologia, apresentando o Velho Continente como ponto de partida e exemplo para a preservação da vida na terra.
De igual modo, a utopia da hospitalidade, levada longe nas trocas preconizadas pela União Europeia, com a livre circulação de bens, serviços, mercadorias e pessoas, com o zénite cultural assente no programa Erasmus,
que substituiu as fronteiras pela livre troca de pensamentos, afetos, ideias,
ações e criatividade dos jovens europeus, capaz de substituir os redutos limitativos das identidades pela grandeza de proximidade cosmopolita da alteridade e da vida em comum dos povos, todos diferentes e, todavia, todos iguais no entendimento de uma única família: a família da civilização humana.
Alexandre Honrado
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